• 22 setembro, 2020

DEPRESSÃO EM XEQUE

Nunca se falou tanto de saúde mental, especialmente de depressão. O transtorno estampa capas de revistas, é assunto de telejornal e debatido em posts nas redes sociais. A extensa discussão em torno da doença aflora a sensação de que há uma epidemia em curso.

Em um relatório apresentado em 2017, a OMS (Organização Mundial da Saúde) revelou que a depressão afeta 322 milhões de pessoas no mundo, quase a população dos Estados Unidos. No Brasil, os números chegam a 11,5 milhões. Em 2030, ela será a doença mais comum, de acordo com o órgão.

Mas esse alarde todo também veio acompanhado de dúvidas. Aumentou-se o número de diagnósticos, mas até que ponto não há uma confusão entre tristeza e depressão, até mesmo pelos próprios psiquiatras e psicólogos? O transtorno sempre existiu, mas só agora estamos falando mais sobre ele. Isso não elevaria os números de diagnósticos, mesmo que a quantidade de pessoas deprimidas fosse a mesma?

Existência secular

A depressão está longe de ser uma doença do mundo contemporâneo. Fernando Fernandes, médico psiquiatra e pesquisador do programa de transtornos do humor do Ipq do HC da USP (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo), lembra que o transtorno já foi descrito —sendo chamado de melancolia —desde o primeiro tratado de medicina do mundo, na Grécia Antiga. “O estado melancólico descrito é muito semelhante ao quadro atual de depressão”, diz ele.

Jair de Jesus Mari, chefe do departamento de psiquiatria e psicologia médica da Escola Paulista de Medicina da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), afirma que Salomão, que teria se tornado o terceiro rei de Israel (966 a 926 a.C.), tem sua depressão descrita no livro de Eclesiastes, presente na Bíblia, onde conta como deixou de ver a graça do mundo ao seu redor. Mari ainda recorda que a primeira edição do livro “A anatomia da melancolia”, escrito por Robert Burton, apareceu em 1621 no Reino Unido.

Mas se o transtorno mental é discutido há séculos, por que temos a impressão de que ele é algo recente? É nesse momento que os especialistas começam as discordar. Enquanto alguns sugerem que a depressão só deixou de ser um tabu recentemente e, portanto, mais pessoas foram em busca de tratamento e diagnóstico, outros argumentam que a vida moderna, cercada de imposições em ser feliz, bem-sucedido e estar o tempo todo conectado, sem qualquer aproveitamento do tempo presente, elevou o número de pessoas com o transtorno.

A depressão é pop

Realmente, a discussão em torno da depressão é maior e mais complexa hoje. Várias celebridades expuseram que já lutaram uma batalha contra a doença, do youtuber Whindersson Nunes à cantora Adele, passando pelo ator Jim Carrey. “Antes a psicofobia, que é o preconceito contra as pessoas que têm transtornos e deficiências mentais, era maior”, diz Ana Paula Carvalho, psiquiatra e coordenadora da Liga da Depressão do HC da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). Segundo a especialista, o fato de ter muita gente famosa revelando que luta contra a depressão tem impacto maior do que qualquer médico falar na TV ou em um livro sobre a doença.

Segundo a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), o estigma é um dos principais obstáculos ao tratamento adequado dos transtornos psiquiátricos. Muitas pessoas evitam procurar o psiquiatra, ou até mesmo custam a reconhecer os primeiros sinais de doenças como depressão e ansiedade, por causa do preconceito que ainda está relacionado à psiquiatria. Muitas vezes transtornos do tipo são associados à loucura ou até mesmo a coisas banais, que não necessitariam de um tratamento.

De acordo com uma pesquisa conduzida pelo Ibope em agosto desse ano, 53% das pessoas entre 18 e 24 anos acredita que a maioria dos antidepressivos não funciona ou não sabe opinar sobre isso. 57% dos brasileiros de todas as faixas etárias acha que o psicólogo é o profissional mais adequado para o quadro. Além disso, 44% das pessoas não falaria sobre a depressão no trabalho.

“Diminuiu-se o estigma, então a pessoa começa a buscar mais tratamento, conversa mais sobre o assunto, então a doença aparece mais. Estamos quebrando o preconceito em relação à saúde mental”

Fernando Fernandes

Segundo o livro “A Tristeza Perdida” (Editora Summus) escrito por Allan Horwits, professor de sociologia na Rutgers University, e Jerome Wakefield, professor de trabalho social na Universidade de Nova York, a taxa de transtornos depressivos na população não sofreu um aumento generalizado. O que mudou foi o crescente número de pessoas que buscam tratamento para essa condição, o aumento das prescrições de medicamentos antidepressivos, o número de artigos sobre o tema na mídia e literatura científica e a crescente presença da depressão como um fenômeno na cultura popular.

O mal da vida moderna?

A depressão deixar de ser um tema polêmico tem relação com o aumento nos números de casos. Entretanto, a vida moderna também pode estar por trás desse “boom” em torno do transtorno. Há uma série de aspectos que servem de gatilho para seu desenvolvimento. “O ritmo de vida, a falta de qualidade do sono, de exercícios físicos, o excesso de trabalho e o uso excessivo das redes sociais são apenas alguns dos fatores que podem contribuir para o aparecimento da doença e todos eles estão fortemente presentes entre as pessoas nos dias atuais”, diz Antônio Geraldo da Silva, presidente da Apal (Associação Psiquiátrica da América Latina) e superintendente técnico e diretor da ABP.

Quem defende a tese de como a sociedade atual favorece a depressão, ainda argumenta que, por mais que não existam mais guerras mundiais, as economias locais andam bagunçadas e com números altos de desemprego, aumento da desigualdade social, falta de acesso a tratamentos médicos, à educação, uso precoce de álcool e drogas e crescente urbanização.

Estamos vivendo mais, mas com menor qualidade de vida. Os eventos de vida desfavoráveis, como baixo acesso ao lazer, estresse crônico devido à baixa escolaridade e à privação social, o convívio constante com a violência, principalmente na periferia dos grandes centros urbanos, também são fatores relacionados ao aumento da depressão. Somado à pressão exigida pelas redes sociais em estarmos sempre fazendo algo surpreendente e nos divertindo, o indivíduo entra em um estado deprimido, de que a vida dele não é tão boa assim.

Ainda há a teoria de que o corpo humano não evoluiu conforme o mundo. Ele é preparado para a época das cavernas, quando caçávamos, passávamos tempos sem comer. Diante da oferta que temos de alimentos, não temos que caçar, aumenta resposta inflamatória do organismo e chances de ter depressão e/ou obesidade aumenta.

Tristeza ou depressão? A forma de diagnosticar mudou

Do lado de quem não acredita que esse aumento de fato da depressão exista, há a crença de que o que realmente mudou foi a definição da doença. “Desde 1980, a psiquiatria e as outras profissões de saúde mental usaram uma definição de depressão que confunde o transtorno depressivo genuíno com estados de tristeza intensos, mas normais”, escrevem os autores de “A Perda da Tristeza”.

Segundo eles, desde que a terceira versão do DSM-III (Manual Diagnóstico e Estatístico da Associação Americana de Psiquiatria) foi publicada em 1980, a psiquiatria se baseou principalmente em uma lista de sintomas para sua definição de transtorno depressivo. Então, alguém que tem cinco sintomas de uma lista que inclui humor deprimido, perda de interesse em atividades habituais, insônia, fadiga, apetite diminuído, incapacidade de se concentrar e sintomas semelhantes por um período de duas semanas é considerado como tendo um transtorno depressivo.

Para Mari, entretanto, não houve uma diferença significativa no ponto de corte para se determinar o diagnóstico de depressão do DSM—III ao DSM-V, nem do CID10 para o CID11, que são os manuais atuais que determinam os critérios e diretrizes para se fazer um diagnóstico de depressão.

“Realmente, não existe um exame capaz de confirmar que alguém está deprimido, mas ao se fazer uma conexão entre os sintomas e a vida da pessoa, é possível fazer o diagnóstico correto”, diz ele. Para a depressão se caracterizar como problema clínico, é preciso que haja uma mudança qualitativa na vida da pessoa, sendo este um estado duradouro e persistente por pelo menos duas a quatro semanas, com impacto funcional relevante nas relações pessoais e funções educacionais e/ou ocupacionais.

“A tristeza é passageira, mas a depressão te habita. No transtorno, o vazio e a desesperança invadem o cotidiano”

Jair Mari, psiquiatra

Há uma crítica forte em relação ao DSM. Mas a depressão como doença que vai pegar uma serie de sinais e sintomas em que você vai fazer a história do paciente de maneira adequada e não são os critérios do DSM que determinam se a pessoa tem ou não depressão, segundo Carvalho. “Tem a ver com sofrimento e impacto na vida dela. Tem depressão que não tem tristeza. São coisas diferentes que podem estar ligadas ou não.”

Fonte: UOL 17/08/20

Fonte: Flowing