• 10 outubro, 2017

Olhar para dentro

Estamos vivendo a era digital, em que podemos estar em contato com qualquer um, de qualquer lugar, a qualquer momento. Mas ironicamente nunca pareceu tão difícil estar em contato com nós mesmos”, Jon Kabat-Zinn.

Feche os olhos e tente relaxar. Respire fundo e preste atenção à sua respiração, ao ar que entra e logo em seguida sai de cada narina… Tente entrar em contato com seu corpo. Como está seu corpo agora? Mais relaxado? Tranquilo? Tente apenas sentir o contato dos pés com o chão, o contato do quadril com a cadeira, as pernas esticadas, o calor que esse contato proporciona… Observe novamente a intensidade de sua respiração, deixe que ela encontre o seu próprio ritmo…

Tim… Tim… Tim…

Você acabou de ouvir os três toques das tigelas Tibeteanas, que fazem ecoar pelo ambiente um som metálico agudo, simbolizando o início de uma prática de meditação. Não ouviu? Peço desculpas de antemão pela tentativa, caro leitor: esse é só mais um dos desafios de tentar transmitir o que acontece em uma sessão de meditação.

Vamos começar de novo. Imagine uma sala imersa na penumbra, silenciosa, tranquila. A sala se localiza em um prédio a 15.782 km de distância do Tibete, mais precisamente na Zona Sul de São Paulo. Nela, se encontram seis pessoas de olhos fechados, sentadas em semicírculo. Uma delas sou eu, a repórter que vos fala, e que entre uma respiração e outra desobedece a ordem de manter os olhos fechados pra espiar de leve os outros para saber se está fazendo mesmo tudo certo. No centro da meia lua está sentado um jovem moreno e musculoso, com pinta de galã de novela. Na falta de um monge careca vestido de manto é ele, Marcelo Oliveira, quem dá as instruções. Calça jeans, tênis da moda e camisa polo compõe o lookinesperado do responsável por aquela sessão de meditação.

Marcelo – que não é hippie, esotérico, muito menos budista – é psicólogo e instrutor de meditação capacitado pelo Instituto Breathworks, na Inglaterra. Desde 2011, ele conduz na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) grupos de meditação Mindfulness (ou Atenção Plena, em português) para pacientes do Sistema Único de Saúde. Ali estávamos nós, e ao longo dos próximos dois meses, iríamos nos encontrar uma vez por semana.

Como em um primeiro dia de aula da escola, aquilo tudo parecia uma grande novidade para a maioria das pessoas que estavam ali. Olhares curiosos se encontravam seguidos de meios sorrisos tímidos. Mindfulness era um palavrão complicado e difícil de ser repetido sem ecoar certa insegurança quanto à pronúncia no idioma inglês. E o que ela significava não passava de um grande ponto de interrogação.

“Note que há varias sensações conforme você inspira e expira. O toque do ar nas pontas do nariz, o ar passando pelas narinas, pela garganta, o abdômen e o tórax expandindo. Repare na temperatura do ar ao inspirar, ao expirar. Observe também a intensidade. Não tente interferir”, prosseguiu ele com serenidade.

Um misto de inquietação e tranquilidade parecia preencher o meu corpo. Inquietação por não estar acostumada a ficar parada tanto tempo em uma só posição só, minhas costas gritavam. Tranquilidade por perceber que talvez fosse mais simples do que eu imaginava. Pelo jeito não era necessário ser nenhum iluminado por Buda, considerando que qualquer reles mortal com algum esforço e treinamento parecia ter capacidade de seguir as instruções narradas por Marcelo.

Até aquele momento, a maioria das pessoas do grupo não sabia muito bem onde todo aquele papo de prestar atenção na respiração iria chegar. Não que não houvesse expectativas, mas também não havia muito a se perder. Apesar do desconforto inicial da primeira experiência – para meu espanto, descobri que meditar doía mais do que relaxava –, abertura e curiosidade permeavam a postura da turma. Só mais tarde fui descobrir que nem para todo mundo foi assim. Vera, uma das colegas de turma, contou que também se sentiu desconfortável da primeira vez, mas por outros motivos.  Sofrendo regularmente de ataques de pânico, sentia-se muito mal, tinha um medo incontrolável de conviver com desconhecidos e falar em público.

“Na verdade, na primeira reunião, eu fiquei com muita vontade de fugir da sala. O Marcelo fechou a porta e apagou a luz. Aquilo me deu um pânico tão grande, que eu achei que minha única saída era fugir”, contou ela, que tinha realizado o mesmo curso no ano anterior. Do jeito que ela falava, parecia um medo gigantesco, que inclusive a impedia há algum tempo de entrar em lojas, enfrentar filas, lidar com o mundo lá fora.

“Me sentia como se estivesse tendo um infarto. Meu coração acelerava, sentia a boca ressecada, falta de ar, formigamento pelo corpo, uma sensação terrível de enforcamento. Era uma situação de ansiedade e de pânico tão grande e inexplicável, que eu comecei a me aprisionar em locais onde eu me sentia mais segura como em casa ou no trabalho”, desabafou, tentando nitidamente superar a timidez de revelar detalhes tão íntimos para uma desconhecida. Aos 43 anos, Vera estava ali para retomar sua própria liberdade. Ela estava doente e buscava uma solução.

Apesar das raízes orientais, fincadas na tradição budista, a meditação Mindfulness tem chamado a atenção de cientistas ao redor de todo mundo, cujas pesquisas têm comprovado a sua ação benéfica para a saúde e para a promoção do bem-estar. Segundo a Mindfull Magazine, revista americana especializada no tema, existe hoje no mundo mais de 12 mil profissionais de saúde capacitados para serem instrutores de Mindfulness, além de 740 locais, entre centros acadêmicos e médicos, hospitais e clínicas que usam a prática como tratamento para uma série de problemas de saúde. A lista não é curta. Nela estão doenças relacionadas ao estresse, como tensão arterial alta, diabetes e doenças cardíacas; desordens de ansiedade; dor crônica; depressão; dependência química; insônia; déficit de atenção e desordens de hiperatividade, entre outros.

No Brasil, a Unifesp é pioneira em estudos sobre Mindfulness e, por meio do centro Mente Aberta, tem como objetivo promover intervenções baseadas nesta prática para a promoção da saúde. O centro, que é o primeiro no país a reunir pesquisadores sobre o tema e capacitar instrutores, também oferece programas voltados para pacientes com níveis prejudiciais de estresse e portadores de doenças crônicas. Neles, os participantes aprendem técnicas simples de meditação e são introduzidos ao conceito Mindfulness.

Mas o que afinal é Mindfulness?

Esta também era a pergunta que passava pela minha cabeça numa quarta-feira em meados de outubro, quando eu me sentei pela primeira vez naquela sala da faculdade de medicina em que eu estaria presente com bastante frequência nas próximas semanas e que, apesar de ampla, nada se assemelhava a um templo budista. Era o primeiro dos oito encontros do programa que seguiria ao longo de dois meses.  A dúvida, no entanto, não parecia tão fácil de ser respondida, considerando que Marcelo, ao invés de explicar o que era Mindfulness, fez-nos sentir.

Cada um recebeu duas uvas passas. A primeira instrução era comer uma das frutinhas, do mesmo modo que você sempre costuma comer. Nada que ninguém ali nunca havia feito antes, talvez tirando o fato de que não estamos habituados a comer só uma, mas sim uma mão cheia delas. A segunda fruta, no entanto, não podia ser simplesmente enfiada na boca, mastigada e engolida: o objetivo era entrar em contato com ela como se não soubéssemos o que era uma uva passa. “Olhe pra ela, perceba o brilho, a coloração, suas imperfeições. Perceba o peso. Coloque-a entre o indicador e polegar e pressione. Sinta a textura. Olhe um pouco mais de perto. Agora a encoste em seu lábio inferior. Passe pelo seu lábio e note a diferença entre sentir o objeto pelos seus dedos e com os seus lábios. Feche os olhos e apenas cheire o objeto”, direcionou. “Veja se há diferença entre uma narina e outra. Veja se acontece a sensação de salivar ou qualquer outra. Agora, coloque a uva sobre a língua. Sem mastigar, pressione-a contra o céu da boca e contra os dentes. Note se aparece a vontade de querer mastigar. Ponha debaixo da língua. Note qualquer sensação que apareça. Agora nós vamos dar uma única mordida nesse objeto e voltar a investigá-lo”, instruía Marcelo ao longo de quase cinco minutos.

“Alguma vez vocês entraram em contato coma uva passa de maneira tão intensa?”, indagou ele, iniciando uma discussão sobre as diferentes sensações surgidas no ato de comer a primeira e a segunda frutinha. A resposta foi um unânime “não”. Voltou a questionar: “Se não sinto direito nem uma uva, quantas outras coisas na minha vida será que estão passando e eu não consigo sentir? Por simplesmente fazer automático. O que vocês acham? Vocês já comeram uva passa antes”.

Todos concordaram.

“Mindfulness é um estado de consciência. É uma maneira de se relacionar com a vida e com as pessoas. É tomar consciência do presente momento, de maneira intencional e sem julgamentos”, explicou em seguida. De maneira simples, é o experimentar do aqui e do agora, prestando atenção, deliberadamente, em coisas que nós geralmente nunca dedicamos nem um minuto para pensar a respeito. E ainda alertou os desavisados: “Muitas pessoas pensam que meditar é atingir um estado de mente vazia, de não pensar em nada. Mindfulness não é sobre isso”.

Vera era uma dessas pessoas. “Eu sou totalmente agitada. Meditação para mim era apenas uma linha religiosa. Nunca me imaginei meditando. Meu primeiro contato com Mindfulness foi de total descrença. Meu desafio era me livrar da prisão que eu havia criado pra mim”, disse.

A meditação Mindfulness tem suas raízes em tradições orientais de origem budista e foi trazida e difundida no ocidente, com este nome em inglês, pelo norte-americano Jon Kabat Zinn, PhD e professor emérito de medicina no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Destituído da base religiosa original, o médico criou um programa sistematizado por meio de manuais para introduzir Mindfulness na vida das pessoas comuns. “Todos nós temos a capacidade de estar mindful. Isto envolve a prática regular e disciplinada de estar consciente momento a momento. De sentir todas as experiências, sejam elas boas ou ruins. Seria possível experimentar alegria e satisfação do mesmo modo que experenciamos sofrimento?”, escreveu Kabat Zinn no primeiro capítulo de sua obra mais famosa, “Full catastrophe living: using the wisdom of your body and mind to face stress, pain, and illness”, publicado em 1991 e ainda sem tradução em português.

Como se estivesse em sintonia com Jon Kabat-Zinn, Vera me confessou: “Com a meditação, eu descobri que sofria muito na vida por não conhecer meus próprios sentimentos e os mecanismos de autocontrole. Por não deixar fluir os sentimentos de alegria, de compaixão, de compreender que estamos aqui, para realmente viver com excelência, na alegria ou na dor. Tudo isso faz parte do contexto do ser humano”.

Segundo o autor, a prática sistemática de Mindfulness contribui para o desenvolvimento de novos tipos de controle e sabedoria em nossas vidas, com base em nossas capacidades internas para relaxamento, atenção plena, consciência e percepção. Por meio do livro, que mais tarde se tornaria uma espécie de bíblia do Mindfulness, Kabat-Zinn expôs um protótipo de seu programa de Redução de Estresse Baseado em Mindfulness (Mindful Based Stress Reduction – MBSR, em inglês) e os resultados positivos de sua aplicação em pacientes que sofriam de estresse e dores crônicas, como aquelas citadas na longa lista do início da reportagem. Em 2012, foram contabilizadas 477 publicações científicas sobre Mindfulness baseadas no programa MBSR, que, criado em 1989, já foi aplicado em mais de 20 mil pessoas ao redor do mundo até os dias de hoje, segundo estimativas do Centre of Mindfulness.

Dentre essas 20 mil estava Vera, que apesar do ceticismo inicial, não tardou a reconhecer as mudanças que lhe ocorreram depois que começou a praticar a meditação e concluiu as oito semanas do programa. “Incrivelmente, a primeira prática já me fez sentir uma pessoa capaz de mudar minha própria história. A meditação foi me preenchendo de tal forma que eu não conseguia parar de meditar”, revelou.  Hoje, ela incluiu a meditação em sua rotina diária e admite sentir falta – “o dia fica diferente”, adimite – quando, por algum motivo, deixa de meditar.

“Toda bagunçada” foi como ela definiu sua vida antes da meditação. “Cuidamos do corpo, da pele, dos cabelos, do físico, do espírito, mas deixamos a mente de lado. Nos esquecemos de higienizá–la diariamente. Para mim, meditação é como tirar a cabeça e limpá-la por dentro, jogando todas suas impurezas fora. Quando não fazemos isso, ela acaba de tornando um grande saco de lixo, que se deteriora ao longo dos anos”, completou. Foi o que aconteceu com ela.

No Brasil, a Unifesp já aplicou o programa em aproximadamente 200 pessoas que, como eu e Vera, frequentaram os encontros presenciais semanais, em que aprendíamos diferentes técnicas de meditação, discutíamos as dúvidas, os desafios e, claro, os benefícios e descobertas de se viver Mindfulness.  A meditação é chamada de prática formal e, diferente dos que muitos pensam ao associar meditação ao esotérico e ao transcendente, qualquer um pode meditar. Já existem estudos que medem a predisposição natural (em inglês, dispositional mindfulness) que cada um tem de estar Mindfulness, ou seja, a capacidade nata de cada pessoa para a atenção plena.

Para além da meditação

Mindfulness não é apenas sobre sentar e meditar. Segundo Marcelo, a meditação é apenas uma técnica, um exercício para um estado de consciência que pode ser praticado a todo o momento, através das chamadas práticas informais. Assim seria possível andar, ouvir música, escovar os dentes, tomar banho, conversar com os amigos, comer uma uva passa, enfim, viver Mindfulness.

“O objetivo do exercício da uva passa é mostrar que quando eu direciono minha atenção para algo, eu vivo este momento e saio da lógica da mente macaco, que fica pulando de um pensamento para o outro. Geralmente nossa mente está ocupada pensando no passado, futuro, preocupações, assim acabamos deixando a vida passar sem sentir, sem viver. A vida acontece no presente, se não estamos vivendo o presente, o que é que nós estamos vivendo?” indagou Marcelo, ainda no primeiro no encontro.

Como em qualquer curso, recebemos alguns deveres de casa, que na prática pareciam não exigir nada mais do que aplicar mindfulness em tarefas que já praticávamos todo santo dia. Eram as tais práticas informais – que mais tarde eu chamaria de evolução da meditação. Uma delas foi escovar os dentes. Ah, mas não ao mesmo tempo em que você assiste TV, se admira no espelho do banheiro, ou pensa na morte da bezerra. É escovar os dentes com atenção plena. Isso quer dizer, sentir o sabor da pasta, sentir a cerda em cada dente na gengiva, a temperatura da água, o movimento do braço, a pressão que a escova exerce em cada milímetro da boca e dos dentes. Sentir escovar os dentes, manter a mente ali.  Parece fácil. Mas não é. Minha mente saía nos primeiros 30 segundos e ia parar no trabalho, na roupa molhada no varal, na festa do final de semana. Isso sem contar as vezes que, como uma criança indisciplinada, eu me esquecia do dever de casa e escovava os dentes andando pela casa, arrumando a prateleira do banheiro ou respondendo mensagens no celular. Mas afinal, o que mais escovar os dentes define em nossas vidas além de manter a higiene bucal?

Bom, Vera também começou escovando os dentes… até perceber isto tudo não era exatamente sobre saúde bucal. “Minha mente está mais em foco. Vivo um dia de cada vez, sem me preocupar com o passado e sem ansiar pelo futuro. vivo o momento, vivo as pessoas, vivo a natureza, vivo o que tiver que viver”, explicou.

Hoje Vera não sofre mais com os ataques de pânicos e não esconde a satisfação com sua nova vida.  O que mais mudou? “A autoconfiança, o autocontrole e o mais importante: reconquistar a liberdade”, comemora.

O que diz a Ciência?

Eis a grande descoberta do meio científico: utilizando a meditação somos fisicamente capazes de alterar nossa atividade cerebral. No entanto, o que é novidade para os neurocientistas, já tem sido praticado por outras pessoas em tradições orientais há pelo menos três mil anos. Em pesquisas realizadas pelo neurocientista Richard Davison, da Universidade de Winsconsin, nos Estados Unidos, foram analisadas a configuração do cérebro de monges budistas em estado de atenção plena durante práticas meditativas. Por meio de tomografias por emissão pósitrons e eletroencefalogramas, foi possível observar mudanças principalmente no córtex pré-frontal esquerdo do cérebro, que é associado ao entusiasmo e à felicidade.  Realizando a chamada meditação de compaixão, esses monges foram capazes de inverter a atividade de seus neurônios do lado direito – associado à negatividade e ao estresse – para o esquerdo. Essas mudanças nunca tinham sido observadas antes.

No entanto, não é preciso ser um monge budista para poder meditar e desfrutar de seus benefícios.  Longe disso. Pesquisas baseadas em participantes do programa para redução de estresse (MBRS), semelhantes ao oferecido na Unifesp, também já tiveram seus benefícios comprovados. Um exemplo é a diminuição da taxa de cortisona no cérebro daqueles que praticaram a meditação regularmente, hormônio que em excesso pode causar estresse e depressão.

Através do grupo Mente Aberta, criado pelo professor Dr. Marcelo Demarzo, a Unifesp já conduz pesquisas na área desde 2011. Demarzo é médico especializado em medicina da família e descobriu Midfulness em um congresso em 2008. “Desde a graduação, eu buscava alguma coisa que pudesse dar poder aos pacientes, promover o autocuidado, junto com o cuidado proporcionado pelos profissionais de saúde”, revelou, que já era um grande interessado em conhecer alternativas aos tratamentos tradicionais, e, não por acaso, praticante assíduo de yoga. O interesse imediato em Mindfulness não foi um acaso do destino.

Como na época os estudos em Mindfulness no Brasil eram praticamente inexistentes, Marcelo precisou atravessar oceanos em busca de informação e formação: Índia, Estados Unidos e Inglaterra, país em que chegou a fazer um curso diretamente com Jon Kabat-Zinn, o pai do Mindfulness. Toda esta trajetória era necessária para a realização de seu objetivo: voltar ao Brasil e criar um centro para formar profissionais competentes para trabalharem com a técnica no país. Deu certo, o Mente Aberta é hoje referência nacional para estudos de Mindfulness. Mas Demazio quer ir mais longe. “Tenho um grande interesse na implementação de Mindfulness no sistema público de saúde”, afirmou. Isso já acontece em outros países do exterior, por exemplo, na Inglaterra há investimento público para aplicação de Mindfulness no National Heatlh Service e para a capacitação de profissionais de saúde na técnica.

Demarzo acredita que a implementação no SUS não precisa ser encarada como um sonho impossível de ser alcançado. Já existe uma política nacional para incorporação de práticas integrativas no sistema de saúde, como o caso da homeopatia, por exemplo. Diante de todas evidências científicas, Mindfulness poderia entrar no pacote das práticas integrativas. Por outro lado, o médico ressaltou a importância de se desenvolverem pesquisas para identificar qual a aceitação dos profissionais, dos gestores de saúde e dos pacientes para esse tipo de intervenção.

Ele defende que uma das grandes vantagens de se implantar Mindfulness no sistema de saúde são os baixíssimos custos envolvidos. Programas de capacitação permitem treinar um profissional para que ele esteja apto a ofertar a prática nas unidades básicas de saúde e atingir um número muito grande de pessoas. Demarzo ressaltou que Mindfulness funciona como um complemento que não substitui outros tratamentos. “É uma ferramenta dentro do tratamento. Muitas vezes você associa fármacos à prática da meditação. Tem momentos que o paciente pode precisar mais do remédio, tem momentos que pode precisar mais de Mindfulness”, explicou. O medicou ainda acrescentou à lista outro grande ganho para a saúde pública: o potencial preventivo da prática. “Quem pratica Mindfulness regularmente tem menor risco de ter depressão e ansiedade. Há um efeito de promoção da saúde que pode prevenir casos de doenças e o uso de medicações”, completou.

Hoje, o Mente Aberta já está fazendo parecerias com prefeituras de alguns municípios, para oferecer a capacitação de profissionais das unidades básicas de saúde. Atualmente, o trabalho está sendo desenvolvido em Santo André. “Nossa ideia também é formar mais gente, agora somos poucos, e para expandir, são necessários profissionais”, disse Demarzo. Além disso, o grupo realiza pesquisas sobre os efeitos da meditação para insônia, tabagismo, dependência química, saúde do trabalho, entre outros.

Uma das pesquisas é conduzida pela mineira Viviam Vargas, instrutora de Mindfulness capacitada pela Escola de Medicina de San Diego, da Universidade da Califórnia. A psicóloga pesquisa como a prática de meditação pode ajudar mulheres que sofrem de insônia e são dependentes de benzodiazepínicos, os populares tranquilizantes, para pegar no sono.

Um estudo-piloto foi realizado com 16 mulheres que tomavam medicamentos para dormir. Elas foram divididas em dois grupos. O primeiro grupo recebeu as orientações usais para reduzir o uso dos medicamentos, a outra metade, além das orientações, passou a meditar durante dois meses, com uma aula por semana, em um programa semelhante ao MSRB. No grupo que não praticou meditação, duas mulheres, ou seja, 25% pararam completamente o consumo de medicamentos. Já no grupo que meditou, essa proporção subiu para 75%, ou seja, seis das oito mulheres abandonaram os tranquilizantes, e as duas que não pararam, reduziram substancialmente as doses.  Viviam considera o resultado significativo, levando em conta também o ganho na redução dos efeitos colaterais causados pelo uso de tranquilizantes, que incluem perda de memória e crises de apneia. Agora, o próximo passo da psicóloga é expandir a pesquisa para um número maior de mulheres.

Educando o coração e a mente

As lentes arredondadas de seus óculos não me impedem a visão do brilho nos olhos de Marson, quando tocou no assunto. O esboço de um sorriso bobo aparece timidamente em seu rosto. Sintomas claros de um apaixonado. Tudo começou em 2011. Sem dúvidas foi amor à primeira vista. O cupido? Ninguém mais e ninguém menos que Dalai Lama, em carne e osso.

Espera, deixe-me esclarecer algum possível mal entendido. Não mudamos o tema da reportagem para histórias de amor. Continuamos falando sobre Mindfulness – a mais nova grande paixão de Marson, que a conheceu em uma palestra com o líder político e espiritual do Tibete, que estava visitando São Paulo. Desde então, ele se tornou um entusiasta da prática e de seus benefícios.

Hoje, Marson frequenta uma vez por semana o curso para formação de instrutores – o único do Brasil – oferecido também pela Unifesp. Mas diferente de seus colegas de classe, ele não é profissional da área de saúde. É professor de Física e Matemática, e foi apresentado à Mindfulness no momento em que vivia uma grande crise quanto a sua profissão. “Eu estava passando por muitos conflitos ideológicos dentro de sala de aula. Estava convencido de que nosso sistema educacional não estava minimamente dando conta da nossa sociedade. Mas eu não tinha uma resposta, não tinha um plano de ação, eu nem conseguia localizar onde estava o problema. Para mim eram mil coisas erradas ao mesmo tempo”, recordou Marson.  E quem respondeu suas inquietações foi Dalai Lama. “Ele não deu só a resposta, mas também a solução”, disse reflexivo.

Na palestra, o líder afirmou que a educação intelectual nunca vai ser suficiente, porque o ser humano é emoção e intelecto. Para ele, uma educação que trabalhe somente o intelecto será sempre insuficiente e incompleta. Marson endossou a teoria, e defende ser necessário um equilíbrio entre as duas coisas,                   que pode ser conquistado com o ensino de mindfulness nas escolas. Apesar da visível empatia com o líder religioso, Marson ressaltou a importância do protocolo ocidental de Mindfulness – de Jon Kabat Zinn – e seu caráter laico para a educação.  “Só assim você conseguiria transitar em todos os ambientes sem gerar um conflito religioso”, afirmou.

O que orienta a vida de Marson agora é o desenvolvimento de um projeto para levar Mindfulness para as escolas e introduzir no currículo educacional de crianças e adolescente. “Minha intenção é concluir o curso para ter uma formação mínima para a capacitação de professores”, explicou ele, que antes já havia feito dois cursos online do centro americano Mindful Schools, direcionado justamente para fins educacionais.

O professor levava uma rotina frenética. Ao longo de dez anos teve experiências desde em escolas de periferias e cursinhos populares até nos colégios de alto padrão, quando em 2013 resolveu dar um tempo e tomar uma decisão: largar a sala de aula para ter mais disponibilidade para os estudos de Mindfulness. Ele trocou 60 horas de trabalho por semana por uma rotina mais tranquila. Hoje dá aulas particulares e faz consultoria educacional, atividades que intercala com sessões de meditação diárias de meia hora e seus estudos e leituras sobre Mindfulness.

Até o surgimento do curso da Unifesp, em 2013, Marson parecia ter apenas uma única saída para seu objetivo de se aprofundar nos estudos sobre o tema: investir em média 15 mil reais em um curso no exterior. Hoje, participa do segundo módulo da capacitação de instrutores na capital paulista, há apenas 120 km da cidade de Sumaré, nos arredores da Campinas, onde mora. “Os cursos eram todos nos Estados Unidos e Europa, chegou essa oportunidade e agarrei com unhas e dentes”, contou satisfeito.

Educação e Mindfulness é um campo ainda recente na ciência, mas iniciativas nos Estados Unidos, encabeçados pela Mindfull Schools e na Inglaterra, coordenados pelo Grupo B. incorporaram meditação nas atividades escolares e constataram resultados positivos. Por exemplo, um estudo realizado pela pesquisadora Felicia Huppert, da Universidade de Cambridge, constatou redução de impulsividade e estresse, e aumento de empatia, concentração e bem-estar entre estudantes que meditaram regularmente.

Marson acredita que a meditação pode revelar uma nova saída diante de muitas das situações problemáticas que ele viveu dentro de sala de aula. Segundo o professor, não era raro encontrar alunos que faziam uso de Ritalina, medicamento controlado usado para tratar déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Estudos recentes realizados pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro mostraram um aumento de 800% no consumo da droga no país nos últimos dez anos, fazendo com que o Brasil ocupe o segundo lugar dos países campões no consumo deste medicamento, perdendo apenas para os EUA.

“Mindfulness faz o que qualquer outro estudo de si mesmo faz: enxergar os seus próprios tiros no pé. A gente aprendeu a ser sonâmbulo. A não prestar atenção em nós mesmos. Ter conhecimento do nosso próprio funcionamento é fundamental pra gente sofrer menos e se relacionar melhor. Eu vejo então uma possibilidade enorme de trabalhar dentro de salas de aula conflitos que todos nós passamos, Existe um aliado melhor para a educação?”, questionou sorridente o professor, revelando que não tinha dúvidas quanto à resposta.

“Eu estou praticamente convencido de que funciona. Agora falta o último passo, que é entrar em sala de aula e fazer com as minhas próprias mãos”, finalizou, com olhos de sonhador e voz de determinação.

FONTE: Usp.br

Fonte: Flowing