• 3 novembro, 2020

O valor da amizade

A cartinha escrita na noite anterior que pretendia entregar ao meu paquera estava na mochila e confidenciei isso a uma amiga da escola. No meio da aula, ela revelou meu segredo para todos da sala. Soube então o que significava a confiança. E como era importante. Encontrar um amigo não é tarefa fácil. É preciso coincidir a vontade de compartilhar uma história, que envolve capítulos da comédia ao drama, em narrativa não linear.

O desafio é posto sobretudo pela complexidade das relações humanas – amigos precisam estar dispostos à experiência de se conectar em nível profundo e positivo para trocas, oferecendo o que há de melhor dentro da gente.

Só que estamos em constante processo de transformação, atropelados por uma rotina de obrigações sufocante e apressada, e a instabilidade parece não favorecer a construção de laços mais profundos ou a manutenção de vínculos mais próximos. A amizade, contudo, resiste teimosa a essa lógica e se agarra à nós como uma alternativa para seguirmos em frente juntos, compartilhando o bem-querer.

Amigos são pessoas afins que se encontraram; a disponibilidade para o convívio e a dedicação investida na relação mostraram que elas se complementavam a seu modo, e decidiram então que valia a pena continuar lado a lado, simplesmente porque isso era bom. Aí essas pessoas acompanhadas uma da outra vão se conhecendo mais e mais, participam das mesmas experiências, estão prontas a se abrir e a expressar emoções, o que gera confiança e intimidade.

Dividem histórias, opiniões, aprendizados, segredos, risadas, memórias, silêncios, dores. Fazem com que os problemas fujam temporariamente, ajudam a desembaraçar nós; compartilham dos mesmos gostos e interesses, ou não; aceitam e respeitam as diferenças; contribuem sobremaneira com o nosso nível de bem-estar; torcem para que a gente cresça e acumule conquistas, e estão sempre lá também para as comemorações.

A amizade então vinga. Mas a manutenção exige cuidado. O tempo dedicado a conhecer e cultivar alguém precisa ser considerado, e a distância não é impedimento quando existe a vontade de conservar a relação, de estar para o outro. Essa vontade levou minhas amigas e eu a encontrar um jeito diferente de estar presente.

Nossa última experiência de brincar o tradicional amigo-secreto provou que agradar alguém tem efeitos de reciprocidade. Substituímos os presentes por mensagens, em especial cartas, para encher a alma do destinatário.

Depois do sorteio, antes feito por papeizinhos e que agora conta com a ajuda da tecnologia, a rede de atenção e carinho estava criada. E, assim, uma dúzia de amigas, algumas morando em outro estado ou país, se conectaram à moda antiga. Nas semanas que se seguiram, a troca de cartas foi cumprindo seu valor simbólico de afeto concentrado dentro de um envelope.

Porque houve um momento em que alguém parou tudo o que estava fazendo para pensar no outro em ato de doação, reuniu a quantidade de memória e informação suficientes cheias de sentido que pudessem agradar e começou a aconchegar as letrinhas uma atrás da outra no branco do papel, com capricho – talvez primeiro em esboço, depois em caráter definitivo a ser enviado, e guardado.

Espero e acredito que essa experiência tenha ajudado a reviver boas lembranças em cada uma de nós e desencadeado uma corrente de confraternização integrada ainda que o abraço tenha ficado para depois. Afinal, a revelação mais importante foi descobrir que uma brincadeira que envolve sorteio, surpresa e adivinhação, aparentemente inofensiva, esconde um grande trunfo das relações humanas: conhecer o outro e, assim, reconhecer a nós mesmos.

“A diversão não é tanto quem vamos tirar, mas quem sairá conosco. É como se tivéssemos a oportunidade de saciar a curiosidade de saber o que pensam de nós, como irão nos descrever ao anunciar a revelação e que presente imaginam ser satisfatório para nós”, pontua a doutora em psicologia clínica, Fernanda Kimie Tavares Mishima-Gomes. O ser humano gosta de conhecer a opinião do outro sobre ele e precisa se sentir apoiado, porque é na “interação pessoal que ele se percebe como alguém que pode ser e pode existir. É o olhar do outro que ajuda a construir quem somos, alguém diferente e único”.

Como se desenham as amizades

A amizade às vezes assume faces finitas, pausadas e distantes. Isso acontece porque ela é feita de ciclos – algumas podem durar toda uma vida, mesmo se intervaladas e adaptadas à pessoa que somos ao passar dos anos; outras se desmancham feito bolhas de sabão. De tanto receber gente em seu consultório, Fernanda observou que, para essas relações mais superficiais, de pouco envolvimento e contato, o não sucesso pode ser explicado por comportamentos ainda imaturos emocionalmente.

“Queremos manter o controle, exigimos retorno, esperamos por atitudes, buscamos correspondência, queremos ter necessidades satisfeitas e ser contemplados em nossas próprias vontades, o que pode desencadear sentimentos de frustração. Só a capacidade de lidar com decepções nos permite entender e aceitar o outro em suas particularidades e, assim, sustentar a amizade.”

Para aquelas redondas e maciças, há um eixo comum norteador: “A possibilidade do encontro real, verdadeiro e único de pessoas dispostas a se relacionar afetivamente, sendo para o outro aquilo que se é capaz”, destaca.

Por acreditar que “amizades tendem a ser um ponto de estabilidade em um mundo em constantes mudanças”, a The School of Life, de São Paulo, oferece um espaço para sair do automático e, na companhia dos outros, colocar em perspectiva o relacionamento entre amigos. A escola tem entre seus fundadores o filósofo suíço Alain de Botton e promove encontros sobre como lidar com questões corriqueiras da vida.

A aula “Como trocar quantidade pela qualidade nas amizades”, conduzida pelo físico budista Stephen Little, é baseada principalmente em Aristóteles, que percebeu que, apesar de a amizade ser uma intensa fonte de alegria e prazer, ela também é bastante diversa e demanda uma postura ativa e paciente de cuidado a longo prazo. Em busca de entendimento, o filósofo grego agrupou os amigos em três tipos: “amizades de utilidade”, que dependem de atividades e projetos em comum; “amizades baseadas no prazer”, que duram enquanto houver esse sentimento na relação; e “amizades fundamentadas em amar alguém por quem é”, quando você conhece o outro e é conhecido por essa pessoa exatamente por aquilo que vocês são de fato. Ainda que diferentes relações exerçam sua função e devam estar garantidas em nossa vida, é em busca desse último tipo de conexão que devemos nos guiar – embora o seu valor seja também proporcional à raridade.

Na aula, foi proposto um exercício prático de colocar no papel o desenho do seu “campo afetivo”, um mapa para considerar a posição que cada amigo ocupa em sua vida. Ponderei com critério que lugar reservar àquelas pessoas que me vinham à mente, porque fazem parte da minha história. Com meu nome acentuado no meio da folha, fui rabiscando os outros círculos que abrigariam meus amigos mais próximos e verdadeiros, até aquelas pessoas que considero importantes, mas que estão mais distantes.

Nunca fui dada às listas classificatórias, mas a rigorosidade da coisa colocada no papel facilita a visualização daquilo que é latente. As interrogações se haveria alguém que gostaríamos de trazer mais para perto ou por que é difícil estabelecer amizades duradouras aparecem para sustentar reflexões bastante consideráveis.

Uma coisa muito bonita que Platão disse é que “a amizade é uma predisposição recíproca que torna dois seres igualmente ciosos da felicidade um do outro”. Então deixo tomar conta de mim uma gratidão suave em relação às pessoas disponíveis que encontrei e que faço questão de acompanhar e manter por perto.

As trocas nos tempos do agora

A singularidade de cada amizade se desdobra em histórias múltiplas, construídas a partir do reflexo das pessoas envolvidas na relação. Interessadas por esse fenômeno, as colecionadoras de amigos Liza Scavone e Maria Flavia Ciampi criaram o projeto Amigo Preto e Branco, que reúne narrativas sobre amizades tornando-as acessíveis a todos como forma de recuperar e registrar esse valor. “É uma homenagem pública à oportunidade de expressar sentimentos e aprender com outras experiências”, declaram.

“Amizade é poder confiar no amor que alguém sente por você, que ajuda a se movimentar e a crescer, trazendo a liberdade de ser quem verdadeiramente somos.” A iniciativa é providencial em tempos de redes sociais, quando o conceito parece tão banalizado por somar amigos sem, contudo, sentirmos a presença deles. Todos têm acesso à sua intimidade e manifestam opiniões através de curtidas, demonstram emoções com alternativas simplistas de carinhas coloridas, ou enviam comentários feitos de palavras abreviadas, que encurtam o sentido.

Se a tecnologia parece anestesiar as relações, é também verdade que atua como fermento em algumas delas, porque tornou mais fácil fazer e manter um contato. A interação com a diversidade faz bem ao apresentar e ampliar possibilidades e renovar ideias, nos tornando mais abertos para conhecer pessoas. Fato é que temos a necessidade comum de estar com o outro. A constância em uma relação favorece o vínculo e a vivência de experiências boas em potência. Afinal, as mãos estão em pares para serem dadas. “Não nos afastemos muito”, aconselha o poeta Carlos Drummond de Andrade. Porque a amizade nos faz (bem) mais felizes.

Fonte: Vida Simples 13/10/20

Fonte: Flowing