• 11 junho, 2020

Filhos na cozinha

Maria foi a minha primeira experiência de maternidade, mesmo que somente aos finais de semana. A gente foi se descobrindo, se conquistando, se respeitando e se apaixonando uma pela outra, numa ordem natural das coisas que me orgulha demais. Eu não tentava ser a mãe dela. Mas eu queria ser presença. E, desse jeitinho, construímos uma relação muito bonita, que não se desfaz, independente dos caminhos e das escolhas futuras. A gente já se habita uma no coração da outra.

Do brigadeiro ao chocolate quente

Nessas semanas em casa, Maria teve muitas vontades na cozinha. No início, era algo simples e, por isso, ela tinha total liberdade para preparar sozinha: brigadeiro, bicho de pé, beijinho, brigadeiro branco com uva, chocolate quente, cappuccino. Eu adorava ver essas incursões para a cozinha. Ela e a irmã, juntas, rindo.

Até que chegou o momento em que ela decidiu partir para voos solos culinários mais complexos. “Ana, posso fazer cookies?”, me perguntou. Pode. “Você pode comprar os ingredientes?”. Posso. E ela escreveu um a um num pedaço de papel. Comprei. Perguntei se ela precisava de ajuda. “Não”, disse ela com segurança. Aceitei. Até que, agoniada, fui até a cozinha checar se estava tudo bem. Ela não estava acertando o ponto do cookie. “Não está igual ao que vi no Youtube”, confidenciou. Fui olhar a receita e percebi que ela tinha usado o medidor errado. Na receita dizia “uma xícara de café”. E ela usou a xícara de cafezinho… Falei para ela que a medida estava errada. E, ao invés de mostrar, apenas comecei a mexer a tigela e a acertar o ponto, sem pedir autorização, sem considerar que, certo ou errado, ali, naquele momento, o território era dela.

A cozinha também é lugar para aprender e para ensinar sobre cozinhar e sobre viver

Gosto de dizer que sou mãe de três. É que além da Clara e do Lucas, meu casal de gêmeos, hoje com 11 anos, tenho também a Maria, minha enteada. Ela tem quase 15. Irá completa-los agora em junho. Idade esperada. E sonhos adiados, da festa, com amigos e abraços reais. Nestes dias de estar em casa, que se prolongam e se esticam feito elástico comprido, Maria, que mora com a mãe, pediu, já nas primeiras semanas da quarentena, para passar os dias de isolamento com os irmãos. E assim foi feita. Cinco semanas com ela. Contabilizadas no coração.

Conheço a Maria desde que ela tem 2 anos, quando chegava com o pai para o final de semana na casa da namorada dele. Mochila nas costas, cabelos encaracolados, presos em uma maria-chiquinha, e um sorriso aberto, que faziam – e ainda fazem – covinhas em suas bochechas. Essa é a lembrança mais antiga que tenho dela.

Chateada, ela saiu da cozinha. E eu nem percebi. Terminei a receita sozinha. Acertei o ponto. A chamei para fazer os cookies e colocar no fogo. “Não quero”, disse ela em tom delicado e entristecido. Naquele momento, entendi, eu havia ultrapassado uma linha que não deveria. Terminei de fazer os cookies. Assei e deixei dentro de um pote. No dia seguinte, com o pote de cookies nas mãos, fui até ela e acenei a bandeira branca. Pedi desculpas. E assinamos a reconciliação com cookies de gotas de chocolate.

Torta holandesa

Neste momento, enquanto escrevo este texto, ela está novamente na cozinha, fazendo uma torta holandesa. Senti cheiro de chocolate queimado. Perguntei se estava tudo bem. “Sim”, ela respondeu. Aceitei. Não estava. A calda de chocolate que cobre a torta queimou. Ela não acertou o ponto da ganache. Mas se virou. Fez outra. E acertou. Sozinha. Sim, é isso. É sobre isso. A gente não nasce sabendo ser mãe, nem madrasta (não gosto desse nome, prefiro o “boadrasta”, como Maria me chama). Mas aprende, com os filhos, com o tempo. Entende que amar é, também, dar espaço na hora e no momento certo. Para que eles cresçam. Por eles, por nós, pelo amor. E a cozinha, veja só, é um ótimo território também para isso. A saber, a torta holandesa ficou ótima.

Fonte: Vida Simples

Fonte: Flowing