• 24 junho, 2020

Como anda a fé do brasileiro?

Ao longo da história, a crença das pessoas e seu apego às instituições religiosas foram transformados. Em dias onde buscamos certezas na ciência e dados para guiar nossos passos, de que forma lidamos com a fé, uma das mais presentes óticas da condição humana? O que pode vir depois?

Se a história é nosso guia, não importa o quão profundas sejam nossas crenças hoje, pois elas provavelmente serão transformadas ou transferidas antes de passarem aos nossos descendentes — ou, eventualmente, desaparecerem. Se as religiões e nossa perspectiva sobre a fé mudaram tão dramaticamente no passado, quais os desdobramentos possíveis no futuro? Quanto ao Brasil e os brasileiros, que tanto se reconhecem como pessoas de fé, como faremos para adicionar esses elementos de veracidade cada vez mais difíceis de se ignorar como a ciência, a estatística e os avanços tecnológicos dentro da química complexa e plural que é a composição de crença?

A crença em uma ou mais entidades e/ou energias superiores e onipresentes mostrou-se necessária para a mecânica de organização das sociedades, mesmo que com o passar do tempo as pessoas tenham concentrado o emprego e exercício dessa crença sob a supervisão do sacerdócio dentro dos templos. A ideia ampla de que uma fé unificada e compartilhada atenderia às necessidades dessas sociedades é definida como uma visão funcionalista proposta pelas correntes religiosas — decupada por vários cientistas sociais, dentre eles Èmile Durkhein.

Sede perfeitos — ou procurem sê-lo

No Brasil, as religiões tiveram seu discurso, antes pétreo e irretocável, sob julgamento. A partir do final dos anos 1970, correntes de autoconhecimento e autoquestionamento tiveram expansão, e os sentimentos de liberdade no limiar do final da ditadura levaram a uma vontade das pessoas de questionar todo o status quo, ou seja, tudo o que era imposto — inclusive a religião que seus pais mostraram como a “correta”. Massivamente, pessoas experimentam diferentes correntes religiosas, resultando em uma característica muito frequente entre os Millennials, que é colocar-se como uma pessoa “que não tem religião, mas tem muita fé”.

“This represents Brazil more than soccer and samba.”

Já os jovens representantes da Geração Z, certamente mais abertos ao diálogo, revertem o rechaço à religião e cobram de forma veemente a alteração de parte dos códigos comportamentais que deixam de fazer parte do mundo do século XXI, como os clássicos patriarcado, homofobia e inequidade de gênero que se fazem presentes em escrituras e na palavra de seus sacerdotes — aplicando o debate e a proposta de reconsiderar antigos e nocivos valores como condições para fazerem parte do corpo de fiéis dessas correntes.

“Quando olhamos para a nova geração, fica claro como eles já estabelecem uma relação mais racional com a religiosidade em sua vida. Os jovens possuem mais acesso à informação, questionam o papel das instituições, e essa realidade recai sobre sua relação com a religião também. Ficou claro em nossos estudos como grande parte deles são críticos em relação à postura de instituições religiosas e líderes mais dogmáticos. As próprias instituições religiosas entenderam isso, e estão buscando horizontalizar mais essas relações, promovendo debates de pautas públicas internamente, buscando dialogar com a ciência, tudo isso com certo controle obviamente, mas sabem que é uma atitude fundamental para conseguirem atrair e engajar os jovens dentro desses espaços.”

Sereno Moreno, líder de planejamento e pesquisa na Box 1824

A religião no desenvolvimento das sociedades

Variações no compromisso religioso e em como exercer a prática religiosa também podem ser atribuídas ao contexto socioeconômico de diferentes sociedades. A estabilidade e o grau de importância da religião na vida das pessoas são grandezas inversamente proporcionais — a religiosidade apresenta um movimento de ascensão, por exemplo, na América Latina e em grande parte da África Subsaariana, e declina onde há mais estabilidade, como na Europa e no leste asiático, a exemplo do Japão.

Isso coincide com o que sabemos sobre os fatores psicológicos e neurológicos profundamente arraigados da crença. Quando a vida é difícil ou ocorre um desastre, a religião parece fornecer um baluarte de apoio psicológico (e às vezes prático). Em sociedades que passam por crises financeiras, você pode orar por boa sorte ou um emprego estável. O “evangelho da prosperidade” é central para muitas mega igrejas da América do Sul, cujas congregações são frequentemente dominadas por um público economicamente inseguro.

Mas, se suas necessidades básicas forem bem atendidas, é mais provável que você esteja buscando satisfação e significado. A religião tradicional vem cumprindo menos esse papel, particularmente quando a doutrina entra em conflito com as convicções morais — a igualdade de gênero, por exemplo. Em resposta, as pessoas começaram a construir suas próprias crenças.

Lacunas nos holofotes

Antes fundadoras de bibliotecas e universidades, as religiões cumprem papel chave na formação de opinião do senso comum, principalmente procurando romper com comportamentos passados não mais aceitáveis. No início deste ano, o Papa Francisco alertou que se a Igreja Católica não reconhecesse sua história de dominação masculina e abuso sexual, arriscaria tornar-se “um museu”. E a tendência deles de afirmar que estamos sentados no auge da criação é prejudicada por um sentimento crescente de que os humanos não são tão significativos no pensamento macro que organiza as sociedades.

Hoje, porém, há outro olhar de vasto alcance preenchendo espaços vagos: a Internet.

Os movimentos online ganham seguidores a taxas inimagináveis ​​no passado. O #metoo, por exemplo, que começou como uma hashtag expressando raiva e solidariedade, agora representa mudanças reais nas normas sociais até então estáticas por décadas. E a Rebelião da Extinção permanece empregando esforços com êxito para desencadear uma mudança radical de atitudes em relação às crises nas mudanças climáticas e na biodiversidade.

Nenhum desses movimentos é corrente religiosa propriamente, mas eles compartilham paralelos com os sistemas de crenças nascentes, especificamente ao promover um espírito de comunidade e propósito compartilhado. Alguns também têm elementos confessionais e sacrificiais. Então, com tempo e motivação, algo propriamente mais religioso poderia surgir de uma comunidade online? Talvez. E esse processo já começou.

“Inicialmente vale apontar sobre a multiplicidade dentro do que costumamos chamar de religiões de afro-brasileiras. A partir disso, temos religiões como candomblé e a umbanda que partem de um modo de vida comunitário e que se relacionam diretamente com a cidade, a natureza e os espaços públicos. Festas, rituais, orixás, caboclos ou entidades possuem a necessidade de elementos presentes na cidade e nos revelam simbologias e representações do mundo sagrado.
Com o isolamento ocasionado pela Covid-19, a circulação por esses lugares foi privada. Importante ressaltar, que historicamente essas religiões já lidam com o “isolamento” frente ao racismo religioso que bem demarca a sociedade brasileira. Mas ao mesmo tempo que há essa dependência para essas vertentes religiosas afro-brasileiras, a espiritualidade também faz parte do cotidiano, da casa e do próprio corpo, ou seja, pode se expressar de diversas formas.
Com isso, sem dúvida vemos algumas práticas e rituais sendo ressignificadas nesse momento, do individual ao coletivo. E nesse caso, a tecnologia não chega para substituir, uma vez que não dá conta de suprir as demandas sagradas, mas sim para facilitar contatos, compartilhar ensinamentos e aproximar a espiritualidade de cada indivíduo em sua maneira. Por exemplo, há terreiros utilizando canais de streaming para transmitir conversas, toques e louvores para Orixás, entre outras ações pontuais.”

Maria Luiza Rodrigues, planejamento e pesquisa na Box 1824

A Inteligência Artificial e o Transumanismo

Talvez as religiões nunca morram realmente. Talvez as religiões no mundo hoje tenham ora mais, ora menos adeptos e flutuações em sua longevidade. E talvez a próxima grande fé esteja apenas começando. No Japão, o budismo vem experimentando ações para atrair novos e seguidores, como exemplo o Templo de Kodaiji (um dos templos budistas mais antigos da cidade de Kyoto). Canalizando a sabedoria antiga através da tecnologia do futuro, um sacerdote dá seus sermões utilizando de linguagem super didática; com a diferença de que esse sacerdote é um robô, de nome Mindar.

Embora o robô pregue, ele não está programado para conversar com os fiéis, ainda que seus sermões sejam traduzidos para inglês e chinês em uma parede próxima, segundo os criadores. A máquina não está equipada com algoritmos de machine learning, mas os projetistas do robô disseram pode-se chegar um dia em que a inteligência artificial dê ao robô certa autonomia, adicionando uma nova (e hoje parecendo um tanto estranha?) dimensão à maneira como as mensagens religiosas são entregues.

“Se uma imagem de Buda falar, os ensinamentos do budismo provavelmente serão mais fáceis de entender”, disse Tensho Goto, chefe do templo na ala Higashiyama de Kyoto, durante uma recente entrevista coletiva descrita pelo Japan Times.

O Mindar é uma das ofertas da endeusada tecnologia, provendo suporte psicológico ao aspecto humano da crença. Bom para a mente? Sim. E para o corpo há outros caminhos também.

Muitas pessoas creem, torcem e provavelmente já imaginaram sua vez de tornar-se um super-humano, resistente aos riscos que colocam a coexistência humana em cheque: mudanças climáticas, vírus de alta adaptabilidade… Enfim, esse sci-fi que achávamos que demoraria a chegar.

O transumanismo é uma teoria sobre o futuro, baseada na premissa de que a vida humana em sua forma atual não representa o fim de nosso desenvolvimento, mas sim uma fase comparativamente inicial. Através da tecnologia, é proposto um update à existência humana, incrementando funções motoras, cognitivas e sensoriais para o que se entenderia pela próxima etapa da vida humana no planeta. Podemos pensar diretamente que a teoria do transumanismo é atrativa pela possibilidade de não morrermos mais, e muitas pessoas acabam se agarrando a isso. Mas de forma geral, faz-se necessário mais conversas sobre a questão; em um passado não muito distante, mostramos não estarmos prontos para assumir a responsabilidade de arquitetar populações.

Propostas de mudança

A Geração Z tem como uma de suas principais premissas a preocupação com o que se consome. E, como já mencionamos no artigo, é uma geração que retoma o diálogo religioso interrompido pelos Millennials. Portanto, é necessário que as religiões entendam as novas demandas da geração para oferecerem experiências, conteúdo e símbolos alinhados a esse público.

A corrente filosófica de maior aderência no mundo ocidental, o cristianismo, respondeu de forma equivalente. O escritório de design da Alabaster.Co, sediado na Califórnia, vem desde 2016 redesenhando a identidade visual de diversos livros cristãos, inclusive os best-sellers que atravessaram décadas — as escrituras da Bíblia Sagrada.

Atenuando as barreiras entre uma identidade visual leve, espontânea e atraente aos jovens e aquela talvez mais carregada de tradição dentre os símbolos, os profissionais criativos aplicam estética contemporânea e “instagramável” às escrituras, em uma tentativa de tornar o cristianismo mais cool para a Geração Z. Religião é conteúdo, mas também é forma, e a transformação de ambos os elementos é essencial para a renovação e sobrevivência das tradições religiosas.

Fonte: Medium

Fonte: Flowing