• 5 fevereiro, 2022

Mãos, cabeça e coração: equilíbrio, respeito e prestígio no trabalho do século 21

No passado, quando as sociedades eram um pouco menos complexas, se você fosse uma pessoa inteligente e ambiciosa, mais do que a média, certamente se destacaria e seria bem-sucedida. Hoje ainda é assim, mas a diferença é que era uma época em que qualidades e habilidades não analíticas, como experiência acumulada e vontade de trabalhar duro, facilitavam as coisas.

Hoje, o “mais brilhante” supera o “que trabalha duro”. Se antes o sistema econômico conferia lugar ao sol se você tivesse uma capacidade cognitiva mediana e até mesmo baixa – em empregos na indústria, na agricultura ou nas forças armadas – agora, na economia do conhecimento, os favorecidos são os altamente inteligentes.

E isso está desencadeando um descontentamento nas sociedades ocidentais, segundo David Goodhar, autor de Head Hand Heart: Why Intelligence Is Over-Rewarded, Manual Workers Matter, and Caregivers Deserve More Respect (Cabeça Mãos Coração: por que a inteligência é supervalorizada, trabalhadores manuais são importantes e trabalhos de cuidado merecem mais respeito, em tradução livre).

No livro, ele explica como a maior demanda por habilidades analíticas e numéricas na era computacional e depois na era digital, colocou a capacidade cognitiva acima de habilidades e aptidões mais tradicionais, e como sendo medida de sucesso econômico e social. “Para ser mais direto: pessoas cognitivamente inteligentes se tornaram muito poderosas”, resume.

Uma boa sociedade seria aquela que tem um equilíbrio entre aptidões manuais, cognitivas e de cuidados. “Hoje, a capacidade cognitiva é um critério seletivo para empregos de alto status. Mas não necessariamente isso é mais justo ou mais humano”. Assim, um dos grandes desafios da sociedade moderna será evitar um grau desproporcional de respeito, prestígio e remuneração aos trabalhos cognitivos em relação aos trabalhos manuais e de cuidados que são tão vitais – ao mesmo tempo, sem desestimular e desprestigiar aquelas pessoas mais cognitivas em nossa sociedade.

Claro, é inevitável que tarefas mais complexas, como projetar um edifício ou desenvolver um novo medicamento, tenham um maior prestígio e maiores ganhos do que um trabalho braçal. Mas David argumenta que uma sociedade bem-sucedida deve buscar o ethos de igualdade de apreço e de estima que flui da cidadania democrática. Colocando de outra forma, ele defende que, uma sociedade que deseja evitar um descontentamento generalizado deve respeitar e recompensar adequadamente aqueles que realizam trabalhos manuais e de cuidados.

“Muitas vezes, quase sem querer, confundimos capacidade cognitiva com valor humano”. Para David, não há razão para que pessoas que realizam trabalhos mentais melhor do que outras sejam consideradas mais admiráveis. E esse foi um dos temas de outro livro seu, The Road to Somewhere, em que descreve as divisões de valores na sociedade britânica, reveladas de maneira marcante pela votação do Brexit:

De um lado está o grupo que ele chama de ‘Anywhere’ (qualquer lugar), formado por pessoas que tiveram boa educação, com alta capacidade cognitiva, e que se sentem confortáveis ​​com a fluidez social e com as novidades;

O outro grupo, com maior número de pessoas, e que ele chama de ‘Somewhere’ (alguns lugares), receberam menos educação, valorizam mais a segurança, o tradicional, e os vínculos de grupo (locais e nacionais).

O primeiro grupo se sente confortável com mudanças sociais porque são pessoas que têm as chamadas “identidades alcançadas” – um senso de si próprios derivado de conquistas educacionais e profissionais, o que lhes permite se encaixar bem praticamente em qualquer lugar. O segundo grupo são pessoas que têm “identidades atribuídas” com base no lugar ou no grupo, o que significa que tendem a se sentir desconfortáveis com mudanças rápidas e para outros lugares.

A divisão Anywhere / Somewhere nem sempre reflete a divisão alta capacidade cognitiva / capacidade cognitiva mediana. Como ele explica, existem, claro, Anywheres com média cognição e Somewheres com alta cognição. Mas há uma sobreposição considerável em trabalhos cognitivos/analíticos que Anywheres tendem a absorver, e trabalhos manuais/de cuidados que Somewheres tendem a realizar.

Está claro que nossa sociedade precisa tanto das habilidades cognitivas da economia do conhecimento, quanto das manuais e artesanais, e da inteligência emocional daqueles que ocupam funções de cuidado. “Mas estas funções tornaram-se cronicamente subestimadas no mundo moderno, desequilibrando nossa sociedade e alienando milhões de pessoas[…] Trabalhos de cuidados e de assistência social, educação infantil e creche continuam a ser subestimados (e mal pagos) porque costumavam ser desempenhados gratuitamente na esfera privada da família, principalmente por mulheres”, ele alerta.

David observa que estamos sendo levados a desenvolver o lado cognitivo, mais ainda com os avanços tecnológicos que reduzem a necessidade de contato humano. Mas são as habilidades manuais e de cuidado que promovem a pertença e o acolhimento. Ele supõe que a atração hoje pela cozinha e por preparar receitas, pode refletir o nosso desejo perene por trabalhos manuais, já que muitos não estão mais usando as mãos no trabalho (afora teclar no computador).

Outro ponto importante que ele levanta é o declínio da saúde mental no mundo todo e como nosso bem-estar emocional depende de algum senso de significado e propósito, que é criado por meio do pertencimento, apego, histórias, amor. “Através da transcendência – o caminho mais poderoso para a busca de significado é: dar aos outros. Não há nada mais espiritualmente recompensador do que cuidar dos outros ou fazer coisas com as mãos. É o prazer de pertencer, o prazer de estar incorporado, neste lugar e tempo, o prazer de ser muito mais do que um intelecto. Ainda assim, a abstração e o desapego dominam nossa cultura. Ingressar no mundo dos empreendedores cognitivos pode significar se desligar de suas raízes.”

Então, como alcançar um melhor equilíbrio entre “mãos, cabeça e coração”?

Há tendências que sugerem que a “cabeça” pode estar prestes a enfrentar uma competição com as “mãos e o coração”. Nicholas Carr, em The Shallows, sugere que ficaremos “mais burros” com a internet. Ele entende que a exposição continuada à internet está reordenando nossas sinapses e tornando-as dependentes de novidades o tempo todo. Isso pode melhorar nossa capacidade de tomada de decisão e de solução de problemas, mas no geral significará perdas importantes na capacidade de linguagem, memória e concentração.

Também espera-se que a próxima onda da inteligência artificial tenha um impacto ainda maior em trabalhos cognitivos nas áreas da contabilidade, arquitetura, engenharia, direito, medicina e outras.

Essa disrupção, que será sentida por profissionais que exercem trabalhos cognitivos, pode levar a uma maior empatia por pessoas que realizam trabalhos rotineiros, manuais e de cuidados, em parte porque contadores, advogados, arquitetos e outros podem acabar fazendo eles próprios esse tipo de trabalho.

Outra tendência positiva que pode elevar o status dos empregos do “coração” é ligada a duas outras grandes e irreversíveis tendências: aumento do número de idosos que, consequentemente, vão precisar de cuidados e o poder crescente das mulheres.

David chama a atenção para uma questão importante: será que o crescente status das mulheres na sociedade impactará em aumentos salariais e no prestígio de empregos de cuidado (que ainda são desempenhados principalmente por elas) ou será que o foco ficará apenas na igualdade de condições em empregos de alta capacidade cognitiva?

Sim, a capacidade cognitiva continuará fundamental para o avanço da nossa civilização, e todas as sociedades desejarão cultivá-la. Mas há sinais de que as mãos e o coração voltarão a ocupar posições de maior respeito e prestígio.

Fonte: O futuro das coisas

Fonte: Flowing